[Mahera – uma comunidade rural a cerca de 2 horas da cidade de Pemba, onde a Helpo actua]
Chegámos à escola – duas salas sem porta, sem janela, com dois grandes rectângulos abertos de um lado e um outro, do lado oposto. A entrada faz-se ao subir dois degraus por mais uma abertura na parede.
As cores não contrastam com a paisagem: são paredes e chão alaranjados, como a terra batida que envolve o edifício, que abarca árvores e palhotas.
A primeira sala acolhe dezenas de crianças muito caladas e atentas sentadas no chão, em frente a um professor e um quadro preto de giz, todo quebrado, todo estragado, de contorno incerto e esbranquiçado. Em África, tudo o que é material parece ter sido sempre velho – até quando foi novo seria velho.
A segunda sala, vazia, semelhante à primeira, esperava para nos receber a nós, ao pedagógico e ao director da escola, bem como às crianças que foram chamadas para receberem presentes dos padrinhos.
Num terceiro compartimento – este com porta de chapa e sem janelas – três jovens meninas preparavam o lanche escolar para aquelas dezenas de crianças.
De repente, começam a ver-se vultos ao longe, a aproximarem-se e a deixarem de ser vultos. Eram mulheres, de um lado, tapadas por capulanas coloridas da cabeça aos pés. Do outro lado, eram homens, todos juntos, vestidos de tons escuros.
No Norte de Moçambique a maioria é muçulmana e isso é bem visível na forma de tratamento da mulher: na sala, eles sentaram-se em cadeiras, elas no chão, encostadas à parede, de pernas esticadas, com o corpo a formar um ângulo perfeito de 90 graus.
Começámos a distribuir presentes. Como é emocionante ver uma criança no centro de uma sala, muito envergonhada e sem sorrisos, a receber presentes que vêm de “lá longe”, do desconhecido, e que são tão desconhecidos quanto a sua origem! São presentes enviados, por gente que cria laços afectivos com uma criança que não conhece, por uma causa que acredita conhecer. No entanto, a maioria destas prendas, apesar do mimo que constituem, enquadram-se tão diminutamente na paisagem! – A escola, as árvores, as crianças vestidas com roupas desbotadas pelo sol e rotas pelo uso e rasgadas por tombos e dores. Onde colocar, nestas imagens, pastas florescentes de bonecos famosos, que só o são no Hemisfério Norte? Como se podem integrar as cores da riqueza, da opulência, do luxo, em paisagens de terra e de nada?
São prendas amorosas, cujo significado tento descodificar, nos olhos de quem as recebe. É que a maioria destas crianças nunca viu algo semelhante aos objectos que lhe estão destinados.
Porém, foi possível perceber o que mais fascina estes meninos e meninas, não pela reacção de quem recebe o presente, porque não exterioriza qualquer emoção, mas pelas dezenas de crianças que assistiam à entrega. Qualquer calçado, uns chinelos, umas sapatilhas…! É muito comovente ver crianças que caminham sempre descalças, por qualquer que seja o chão que pisam, a receber algo que separará a sua pele das pedras e dos picos do solo. Eram “só” umas sapatilhas e ouviu-se um “aaahahh” em coro, em êxtase!
O dia em Mahera não terminou com a tão emocionante entrega de presentes. Fui surpreendida por um homem que queria falar comigo – a “titia” – porque ficou tão satisfeito com as prendas que o filho recebeu, que precisava que lhe arranjássemos um saco para que ele pudesse enviar 25kg de milho da sua machamba para Portugal, para o padrinho do filho. E como foi difícil explicar-lhe que tal não seria possível!
Nem toda a gente é pureza e ingenuidade. Há muito roubo (proveniente da “desgraça”, sim…), muita mentira, alguma maldade ensinada pela dureza dos dias e da sobrevivência. Mas há realmente alguma puerilidade em alguns olhares, pensamentos e palavras, que enchem o coração de quem já viu mais, para lá da machamba, da palhota, da simplicidade.
"...salas sem porta, sem janela, com dois grandes rectângulos abertos de um lado e um outro, do lado oposto. A entrada faz-se ao subir dois degraus por mais uma abertura na parede." |
Joana Ferrari